Ao se falar em cotas destinadas ao ingresso em universidades públicas e, até mesmo, em concursos públicos, é necessário esclarecer, desde o primeiro momento, que se trata de um mecanismo prático para tentar garantir a isonomia material, sendo um instituto jurídico que deve ser encarado com seriedade para que surta efeitos práticos.
A transexualidade e a realidade no Brasil
Antes de adentrarmos aos fundamentos jurídicos que garantem a existência de cotas para pessoas transexuais em processos seletivos, é primordial entendermos qual o sentido das cotas para esse grupo específico de pessoas. Afinal, a informação também é um dos meios de se garantir a justiça.
O termo “pessoa trans” tem como objetivo referir-se às pessoas que não se identificam com o gênero designado a elas no momento do nascimento. Isso porque o gênero intitulado está relacionado ao sexo da pessoa.
Logo, a pessoa trans é aquela que, ao longo da sua vivência – muitas vezes até compreendida ainda na infância – percebe que o seu gênero, determinado no momento do seu nascimento, não corresponde à sua identificação como pessoa.
Ou seja, já em um primeiro contato com o conceito em si, percebe-se que trata de questão de foro íntimo, reservado ao sentimento de autoidentificação de cada indivíduo na sociedade.
No entanto, apesar de se tratar de uma compreensão fácil do conceito, sabemos que a realidade do Brasil, na prática, se mostra insensível, intolerante e violenta. Afinal, o Brasil, pelo 14º ano consecutivo, é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Além disso, é muito importante, enquanto sociedade, compreendermos fato que talvez possa passar sem ser devidamente comentado: ter a vida retirada por outrem não é a única maneira com que pessoas trans podem ter os seus caminhos interrompidos, isso porque a discriminação e o preconceito também são notáveis ceifadores da vida de pessoas trans.
Diante disso, é simplesmente impossível negar a necessidade de implementação de políticas públicas que possibilitem uma vida digna para pessoas trans, nos conformes do que é determinado e garantido pela Constituição Federal. E sobre tal fato, tem-se que a reserva de cotas em processos seletivos é, portanto, uma maneira de garantir a isonomia material para pessoas trans, além de representar uma perspectiva importante de política pública dentro de uma sociedade que endereça a sua atrocidade e violência.
A base legal das cotas para pessoas trans
A necessidade de implementação de políticas públicas para garantia de oportunidades dignas para pessoas trans é uma realidade que se mostra cada vez mais essencial e, como dito, urgente. Para tanto, afirma-se: existe base legal.
Inicialmente, a política de cotas em questão se fundamenta na isonomia material, insculpida no caput do art. 5º da Constituição Federal, tem como foco principal a diminuição de diferenças entre os indivíduos inseridos na sociedade, de forma a possibilitar uma aplicação mais justa das leis, exatamente no sentido de diversificar as oportunidades – e possibilidades – de todas as pessoas.
Além da isonomia material, que introduz a presente leitura, é de extrema importância destacar que a dignidade da pessoa humana, anteriormente mencionada, não trata-se apenas de um conceito vago e repetidamente utilizado em textos que fazem menção a determinado escopo jurídico. Não, a dignidade da pessoa humana é, na verdade, fundamento inescusável para existência do Estado Democrático de Direito, conforme leitura do texto legal abaixo:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana;
Ou seja, trata-se de direito previsto de forma inaugural no texto constitucional. Logo, é dever do Estado a sua garantia.
E muito além disso, é importante mencionar que o respaldo jurídico para implementação das cotas para pessoas trans em processos seletivos encontra respaldo na própria Lei nº 12.711/2012, conhecida como a “lei de cotas”, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino.
Isso porque a lei de cotas não possui o que é chamado juridicamente de “rol taxativo” – que é quando só se pode levar em consideração aquilo que está, literalmente, taxado naquele texto legal, sem possibilidade nenhuma de extensão da interpretação ou de serem adicionadas novas modalidades, por exemplo.
A compreensão relacionada acima tem como base, ainda, o Decreto nº 7.824 de 11 de outubro de 2012, que foi instituído exatamente para regulamentar a lei de cotas. Assim, ao ser realizada a leitura do art. 5º, §3º do decreto em referência, será possível perceber que as Instituições de Ensino Superior podem, sim, proporcionar a criação de novas modalidades de vagas, como se vê da reprodução abaixo:
Art. 5º Os editais dos concursos seletivos das instituições federais de educação de que trata este Decreto indicarão, de forma discriminada, por curso e turno, o número de vagas reservadas.
(…)
§3º Sem prejuízo do disposto neste Decreto, as instituições federais de educação poderão, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas suplementares ou de outra modalidade.
Ou seja: de acordo com a legislação federal vigente, as universidades possuem, sim, o escopo jurídico para criação e destinação de determinadas vagas suplementares ou de outras modalidades, com base, também, no princípio jurídico da Autonomia Universitária, igualmente previsto na Constituição Federal, mais precisamente em seu art. 207, como pode ser conferido abaixo:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Inclusive, há entendimento jurisprudencial no próprio STJ acerca da autonomia universitária quanto a implantação de ações afirmativas, como destacado abaixo:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.818.389 – PA (2019/0159234-7) RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN RECORRENTE: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ UFPA PROCURADOR: PROCURADORIA REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO RECORRIDO: KAMILLI SOUZA DA SILVA ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO EMENTA PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÕES AFIRMATIVAS. POLÍTICA DE COTAS. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. FIXAÇÃO DE CRITÉRIOS OBJETIVOS LEGAIS, PROPORCIONAIS E RAZOÁVEIS PARA CONCORRER A VAGAS RESERVADAS. IMPOSSIBILIDADE DE O PODER JUDICIÁRIO CRIAR EXCEÇÕES SUBJETIVAS. 1. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem, ao decidir a vexata quaestio, consignou (fl. 180/e-STJ): “(…) Sob esse prisma, afigura-se manifesta a legitimidade da pretensão postulada pela autora, na espécie dos autos, na medida em que, embora tenha cursado parte do ensino médio em escola particular, na condição de bolsista integral, conforme documentação acostada aos autos, cursou o restante do ensino fundamental e o 1° ano do ensino médio em escola pública, pelo que não se mostra razoável impedir a matrícula de candidata aprovada no curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará (…)”. 2. Extrai-se do acórdão vergastado que o entendimento do Tribunal de origem não está em conformidade com a orientação do STJ. Com efeito, a matéria de fundo já foi objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça, fixando entendimento de que a forma de implementação de ações afirmativas no seio de universidade, bem como as normas objetivas de acesso às vagas destinadas à política pública de reparação, faz parte da autonomia específica prevista no art. 53 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e de que a exigência de que os candidatos a vagas como discentes no regime de cotas “tenham realizado o ensino fundamental e médio exclusivamente em escola pública no Brasil”, constante no edital do processo seletivo vestibular, é critério objetivo que não comporta exceção, sob pena de inviabilizar o sistema de cotas proposto. 3. Recurso Especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “”A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães e Francisco Falcão votaram com o Sr. Ministro Relator.” Brasília, 10 de dezembro de 2019(data do julgamento). Documento: 101669520 – EMENTA / ACORDÃO – Site certificado – DJe: 19/12/2019 MINISTRO HERMAN BENJAMIN Relator
Além disso, é importante destacar que, em uma visão geral, a criação de cotas para pessoas trans possui o escopo, ainda, de resguardar o direito à educação, que é constitucional e garantido a todas as pessoas, sendo dever do Estado lançar mão de seus recursos para dar efetividade à ordem constitucional.
Assim, veja-se abaixo o texto constitucional que regulamenta o princípio supramencionado:
Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;
(…)
II – progressiva universalização do ensino médio gratuito;
(…)
V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (…).
Logo, a educação faz parte do núcleo mínimo existencial, motivo pelo qual o Poder Público possui a obrigação constitucional de promover os expedientes indispensáveis à sua máxima efetivação.
Existem universidades que já utilizam as cotas para pessoas trans?
A resposta para essa pergunta é positiva. Existem, atualmente, ao menos 12 (doze) universidades que adotam as cotas em referência, listadas abaixo:
- Universidade Federal do ABC (graduação);
- Universidade Federal de Mato Grosso;
- Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
- Universidade de Brasília;
- Universidade Federal do Paraná;
- Universidade Federal do Recônocavo da Bahia;
- Universidade Federal Fluminense;
- Universidade Federal de Santa Catarina;
- Universidade Federal Rural de Pernambuco;
- Universidade Federal do Rio de Janeiro (pós-graduação);
- Universidade Federal da Bahia; e
- Universidade Federal do Sul da Bahia (graduação e pós-graduação).
Além disso, e a título de informação, as cotas para pessoas trans também já foram implementadas em concursos públicos, como no caso do concurso para carreira jurídica da Defensoria Pública de São Paulo. Além disso, as cotas também já foram contempladas em certames públicos para carreira no Ministério Público do Trabalho dentre outros.
Conclusão
Diante de tudo que foi apresentado, conclui-se que a reserva de vaga para pessoas trans é tema que carece de profunda reflexão e, até mesmo, de regulamentação mais específica e objetiva, a fim de que tal ferramenta cada vez mais cumpra com o seu propósito de promoção da igualdade material no acesso ao ensino superior.
Contudo, ao menos em análise preliminar sobre o tema, não há dúvidas de que a implementação do sistema de reserva de vagas para pessoas trans encontra respaldo na legislação pátria, vez que a lei de cotas expressamente prevê a possibilidade de instituição de reserva de vagas de forma suplementar ou de outra modalidade, em consonância, inclusive, com o princípio da Autonomia Universitária.
Caso você tenha qualquer dúvida sobre a implementação e utilização das cotas para pessoas trans, não deixe de buscar mais esclarecimentos sobre o assunto.
Para contato: contato@caiotirapaniadvogados.com.br